você que já veio e você que está

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Theodora e as três babás

Estamos no Rio de Janeiro
O ano é dois mil e cinco

Apresento Theodora:
Theodora é uma nada meiga criatura. Ela tem cabelos claros, olhos claros, xinga, esperneia, dita regras e profundamente filosofa do alto de seus nove anos.

Apresento Ruth:
Ruth é a babá obesa de Theodora. Theodora gosta de chamá-la por "gorda babá Ruth". Ruth chamava-se Roberto José, Ruth é um travesti que prefere ser chamado de coisa à homem. É de certa forma admirável que alguém sublinhe o peso como característica marcante de uma pessoa quando ela é, de fato, um travesti. Você se pergunta como então Ruth teria se deixado chegar ao ponto de ser obesa, se travestis sabidamente têm por costume a vaidade. Bem, Ruth gosta bastante de comer.

Episódio inusitado:
Um dia arrumava o quarto da criança e um caderno chamou-lhe a atenção. Não toque neste caderno, a voz forçadamente senhoril da pequena invadiu os seus tímpanos e arrancou-lhe da boca um grito desorganizado e fora de tom. Você quer me matar, Theodora (mão no coração). E você vai conseguir (mão na cabeça, respiração ofegante, suspiro).

Vamos à mais de Theodora:
Theodora é dessas meninas que não gostam de ser menina. Não penteia os cabelos, não faz balé e muito menos diz coisas agradáveis. Fala três línguas e tem nojo de meninos, como é comum quando se tem nove anos. Mas também tem nojo de meninas. Não brinca de boneca, lê - faltam duas peças para que tenha lido a obra completa de Nelson Rodrigues. Lê Nelson para aprender palavrões. Sabe citar todas as capitais. Mas não cita.

Aquele era um caderno de poesias. Não me pergunte, eu, bem ou mal, disse: ela filosofava. Fica muito bem escondido - estar à mostra naquele dia foi de um descuido raro. Theodora precisa que fique escondido; é isso ou admitir que dentro desse pequeno demônio existe sentimentalismo.

Muitos dizem que Theodora é uma criança difícil.
Estes são os resultados de uma enquete informal:
70% acha a menina mal educada
30% recusou-se a participar da enquete

E também alguns comentários:
1) "Ela nunca deu bom dia" - inspetora do colégio onde estuda. "Nem sequer um sorriso" - completa a faxineira.
2) "Por que não somos amigas? Porque ela é esquisita" - colega de classe da Aliança Francesa.
3) "Theodora não está nos padrões da normalidade" - especialista.

Mas Ruth limita-se a dizer: Theodora é. Não tem medo de ser. Como eu (as duas mãos no peito, sorriso abobado).

- Gorda babá Ruth, saia daqui.
- Você quer cafuné?
- Não.
Geralmente é o sinal para que Ruth se posicione e Theodora deite sobre as suas fofas pernas cruzadas, que de tão fofas mal conseguem cruzar-se. E Ruth começa a contar uma história. Imagina que você está dentro de um navio bem grande, bem bonito, bem divertido. Você consegue voar e, quando voa, sente uma cosquinha na barriga, então você vê todo mundo de cima, como se fossem formiguinhas. Theodora fecha os olhos e parte para esse mundo. Lá nada existe - é disso que ela mais gosta. Busca um lugar em que não exista.

A vida é um cão dos diabos. Ruth vai embora na semana que vem. Nunca mais volta. Theodora passa os dois dias seguintes crescendo. Com a sensação de que precisa ser amável, senão todas as gordas babás vão embora.

Aqui entra a mãe de Theodora, que precisa entrar porque ela é quem contrata qualquer babá. É linda e psicopata.
A próxima babá é japonesa.

Apresento a próxima babá:
Yo Kinimowa Shugharita é a babá japonesa. Theodora a chama de "próxima babá japonesa".
- Próxima babá japonesa, saia daqui.
(Chora a babá)
- Você está com algum problema?

Geralmente era o sinal para que Ruth se posicionasse e Theodora deitasse sobre as suas fofas pernas cruzadas, que de tão fofas mal conseguiam cruzar-se. E Ruth começa a contar uma história. Imagina que você está dentro de um navio bem grande, bem bonito, bem divertido. Você consegue voar e, quando voa, sente uma cosquinha na barriga, então você vê todo mundo de cima, como se fossem formiguinhas. Theodora fecha os olhos e parte para esse mundo.
Mas a babá japonesa ficou ali. Chorando.

Semanas passam-se.

Theodora a mata porque, entre outros motivos, não consegue falar seu nome.
- Babá é o tipo de coisa que se precisa chamar pelo nome.

De repente uma desilusão.
Um desgosto.
Nenhuma outra babá a faria feliz.

Theodora vira babá. A sua própria babá. E se chama de "a minha Eu Mesma babá Theodora"