você que já veio e você que está

sábado, 26 de setembro de 2009

Rio 2000 (Poderia acontecer ali ou) aqui

Nos ônibus existem bastantes dessas coisas. É como quando você se pega sentado olhando para o nada através do vidro da janela, chacoalhando de quando em vez, numa curva ou noutra.
Costumam entrar mais pessoas do que sair. Isso certamente incomoda menos quando você é uma das pessoas que está entrando do que quando é uma das que já estava lá dentro.
Foi num desses fluxos contínuos que entrou uma moça de nariz fino, pele branca e olhos castanhos claros. Uma aparência um tanto burguesa. Mas eu só reparei nisso porque ela se sentou em frente ao vidro que separa os assentos preferenciais dos comuns, de modo que dava para ver o seu rosto mesmo que estivesse de costas. Esse era um de meus dias mais desleixados, o que me suscitou certa vergonha. Eu estava de chinelos, bermuda e uma blusa um tanto quanto surrada. Também me pegara no mesmo dia um mau humor expressivo. Olhei-me pelo reflexo ao meu lado, na janela, e percebi que estava um lixo. Eu sempre alimentei a estranha pressão interna sobre mim mesmo em relação a prestar satisfações a estranhos.
Ela olhou para mim algumas dezenas de vezes. Ora para mim, ora para frente. Nunca para nenhuma outra coisa.
Fiquei imaginando o que poderia ser: ou eu era totalmente irresistível, ou ela tinha TOC.
À medida que as pessoas iam passando pela roleta e caminhando até algum banco vago, ela acompanhava-as com a visão – mas somente para disfarçar, afinal, acabava sempre lançando olhares a mim.
Eu era totalmente irresistível.
A única diferença entre olhares fascinados genéricos e o dela era o fato das suas sobrancelhas se levantarem de uma forma meio esquisita e de seus olhos se esbugalharem um pouco, quando me viam.
Mas a paixão pode tomar diversas formas, mesmo essas, meio esquisitas.
Ela trocou de lugar. Sentou-se do outro lado do ônibus. Baixou a cabeça um pouco. Não era mais possível ver seus olhos ou para o que olhava. Ela, porém, continuava virando-se para trás com certa freqüência. Com a mesma expressão assustada. O Rio de Janeiro costuma ser um bom lugar para uma mulher olhar esquisito para um homem mal vestido e mal encarado.
Ou eu era totalmente irresistível ou ela estava pensando que eu era um assaltante.
Isso me deixou confuso. Ela me admirava, era obsessiva compulsiva ou estava com medo de ser assaltada?
Estranho era, para mim, pensar desse jeito, porque afinal eu sou uma pessoa instruída, de estudo, de posição e de família. Assaltar não se encaixava em meus horários, tampouco em minhas ambições pessoais.
Entretanto, ela me olhava de uma forma tão continua, tão padecedora. Quase uma súplica. Às vezes nós nos percebemos obrigados a nos render a uma situação que não havíamos planejado, ou para a qual não nos tínhamos preparado psicológica ou fisicamente.
Resolvi que o melhor era deixar que a natureza agisse por si própria e que não interrompêssemos o seu fluxo ou nos freássemos contra a sua vontade. Afinal, nós, enquanto criaturas divinas, para nada existimos senão para servir aos Seus mandamentos.
Levantei-me, caminhei até ela e disse da maneira mais desinibida que consegui:
- Isso é um assalto.