você que já veio e você que está

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O Rosto e O Vinho

Onze da noite do último dia morno primaveril. Aprontei-me sem menores detalhes; não haveria tempo. Disparei, louca, com medo de não chegar suficientemente cedo. O trânsito hesitou em me ajudar e eu saltei num repente do bonde, que era de um marrom nada simpático: decidi que seria mais rápido ir correndo. Cheguei da maneira mais esbaforida que já havia chegado em algum lugar em toda a minha vida - os cabelos desarrumados, como não era de meu feitio andar, sendo eu a lady que era; as unhas, roídas, todas, até o sabugo, pela aflição e pelo nervosismo; do joelho até os pés, a meia calça, rasgada. Parecia vinda de guerra, fugitiva ou operária. Vestia um cardigã bege, que - certamente não pela minha vontade - combinava com o antipático marrom do bonde, um par de sapatos alinhados, como de costume, de um estilista recém descoberto - por mim -, luvas de renda e uma bolsa de mão que a esta altura já não estava mais nas minhas - na afobação, era provável que eu a tivesse esquecido em algum canto. Não que isso me importasse, agora. Tive a desagradável surpresa de me encontrar com o mesmo marrom antipático de muito pouco antes. Embora agora não fosse mais o do bonde, mas o do trem. Os meus olhos se perdiam enquanto procuravam por um rosto em especial. Mas eram tantos! E tão parecidinhos. Todos de casaquinhos, com suas esposinhas, suas criancinhas, malinhas, sorrisinhos, passagenzinhas. Todos na felicidade de sorrisos tão silenciosos que chegavam a ensurdecer. A me ensurdecer, é claro. Procurei, procurei, procurei, desesperada, inquieta, impaciente. Eu não me cansava de procurá-lo. E não me cansaria, até que achasse. Enfim, os ouvidos meus e dos demais transeuntes foram presenteados com aquele primeiro som harmônico e nada barulhento que fazem os trens quando vão partir. Foi aí a primeira vez na vida que tive absoluta certeza de que eu estava viva: o meu coração disparou da maneira mais incontrolável e assustadora que pode disparar um coração. Da maneira mais nervosa, mais infame. Eu queria pará-lo - não de vez, logicamente, mas diminuir sua frequência - porque aquilo, de uma certa forma, começava a atingir outras partes do meu corpo e chegava já ao ponto de me fazer passar mal. Meus olhos, num repente estrondo, quase que pulando para fora da face, procuravam mais angustiadamente e com mais pressa do que nunca antes. O trem partiu e eu, parada, ali mesmo, as mãos na cabeça, via os rostos, as mulheres, as crianças, os sorrisos. As malas eu não via, estavam dentro dos vagões. Segui o trem com os olhos até onde minha vista podia alcançar; depois, não mais. Eu poderia ter corrido atrás dele, para, quem sabe, checar novamente. Mas em vez disso, escolhi ficar ali, imóvel, onde estava. Alguns segundos de muitas lágrimas se passaram. Pus a mão no bolso de dentro do meu cardigã - que eu mesma mandei fazer, já que cardigãs têm o péssimo hábito de não ter bolsos - e retirei um papel já bastante amassado, dobrado em quatro. Era a carta. A carta do rosto que os meus olhos procuravam, dizendo que havia ido. Os segundos que se haviam ido não fizeram o favor de levar consigo as lágrimas, que, nesse momento, caíam, incessantes e salgadas, borrando letra a letra, palavra a palavra. Até que todo o documento não se passava de um grande borrão negro, como tinta guache em folha de papel. Amassei mais ainda e, após um lapso histérico dentro de mim mesma, joguei ao alto, sem olhar onde teria caído. Levantei-me da desconfortável posição agachada em que estava, virei, num vagar, de costas e andei ainda mais lentamente até a saída do local. Os meus olhos, agora, só conseguiam ver o chão, amarelo e provavelmente muito sujo. Eu não poderia saber se era frio - estava calçada -, mas desejava, então me abaixei, sem precisar me apoiar, tirei os sapatos e rasguei mais a meia calça. Ela já estava desfiada, mas puxei até conseguir abrir um buraco grande o suficiente para ficar que os meus pés tocassem o chão. Pisei, já descalça e, ele era bem mais quente do que eu imaginava. Talvez por causa do roçar das rodinhas das malas dos sorrisos das crianças das mulheres dos rostos. Chão quente, infeliz. Decidi me calçar novamente, desapontada com o calor que o chão me oferecera em vez do frio, que era o que eu queria. À medida em que andava até a porta, passei na frente de um espelho e resolvi parar por um minuto. O espelho era bastantemente grande para que eu pudesse me revistar de cima à baixo. Os cabelos ainda estavam emaranhados, mas nem de longe mais do que a minha alma, que se podia ver até por fora, de tão cinza. Voltei para a minha casa, de onde talvez eu nunca devesse ter saído - embora se eu não o tivesse feito, acharia melhor ter tido. Fui ao banheiro jogar uma água no rosto e, surpresa! Lá estava o rosto. Chaqualhei, indaguei, chorei, bati, enfurecida, num misto de sofrimento e felicidade, incompreensão, medo e amor - o maior amor do mundo.
- Eu fui comprar um vinho para a nossa noite, para que todo esse drama? Você precisa urgentemente parar de ler Nelson Rodrigues.
Disse o rosto, meu querido, enquanto ligava o chuveiro para nós.