você que já veio e você que está

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Elocubrações

Fazia um frio fora do normal quando a fechadura da porta fez o seu primeiro barulho do dia. Eram sete horas da manhã e eu estava mais para uma sonâmbula que passou a noite em claro com os olhos vidrados no teto e o corpo largado na cama, embora já me tivesse levantado. Vestia a camisola rosa de cetim que o meu pai me deu no dia em que fiz quinze anos, enquanto esperava com uma ansiedade estranhamente nervosa ver o rosto que surgiria, findado o barulho da fechadura, o da porta se abrindo, o da porta se fechando. Sentada no sofá, mudei umas três ou quatro vezes de posição durante aqueles cinco segundos que levava qualquer pessoa que andasse da porta de casa até a sala. Os mesmos que levou, naturalmente, Estevão. Olhou para mim e pediu que eu me levantasse.
- Queria que você se levantasse.
Eu obedeci, como haveria de ser. Levantei-me e olhei fundo em seus olhos castanhos, que ele cismava que eram verdes. Estevão sempre teve a estranha mania de sorrir com os olhos. Como eles eram pequenos, logo se fechavam a cada sorriso ou gargalhada. As pessoas o perguntavam se ele conseguia ver alguma coisa enquanto sorria e, divertido, sempre, ele dizia que via muito melhor do que quem estava de olhos abertos.
- Está vendo isso aqui? Uma passagem - ele disse -, uma passagem.
Uma passagem. Então isso provavelmente queria dizer que nós iríamos viajar! Vijar... há quanto tempo não viajávamos. Nós, eu e Estevão. Só nós dois. Nós dois. Espera. Dois. Uma passagem. Dois? Uma passagem? Então quem iria viajar? E, sozinho? Para onde?
- Para quem é a passagem, meu amor? E para onde? - perguntei para ele, enquanto sofria de uma aflição contida e percebia em seus olhos certa dificuldade de me encarar. Três segundos sem palavras. Um olhar de Estevão para o chão e percebi imediatamente que a passagem era só para ele. Canalha! Cafageste! Iria embora como um cão sem dono e me deixaria sozinha, aqui. Filho da puta! Isso não se faz. Logo mais o meu corpo inteiro se deixou tomar de uma fúria que de tão intensa não cabia dentro de mim. Minhas mãos moveram-se num movimento involuntário e quase que subconciente até as dele e, com a maior força que eu poderia aplicar, arranquei delas aquela maldita passagem. Mas se ele pensava que. Era mesmo um imbecil. Que iria, assim, sem mais nem menos, embora, sem satisfação, sem uma palavra, sem. Ah, ódio. Não, ele não iria. Eu não deixaria. Dá cá essa passagem, larga, me deixa ver. Quero ler para crer no que estou vendo. Estevão recuou com alguns passos; ele, provavelmente, não esperava de mim esse tipo de reação. Nunca fui uma pessoa agressiva, a menos que fosse provocada. E me parecia que para ele aquilo não era provocação alguma. Parecia pelo jeito que ele me olhava, assustado, desentendido. Canalha. Canalha! Passei os olhos com a pressa de quem está transbordando raiva pelas entranhas. Londres. Era para Londres que ele ia. No acerto ele devia ter arrumado alguma namoradinha nova ou amante em Londres. Sim, porque não haveria de ser para ver árvores que ele iria para londres, haveria? E por quê, mais? Dia dezessete de Novembro. Dali a uma semana. Ele havia entrado na minha casa para me informar de que partiria em uma semana. E com que frieza, com que falta de afeto ele. Filho da puta. Os meus olhos oscilavam entre os dele, o papel e o chão, que, de vez em quando, eu olhava para ganhar alguma força. Eu simplesmente não podia compreender porque ele me deixaria. Se ele me tinha nas mãos. Se eu o amava tanto. Estevão era, de fato, o amor de toda a minha vida. Para mim, era Estevão ou mais ninguém. Como? Como? Não havia tomado os meus remédios naquele dia. Os meus nervos estavam à flor da pele. E mais essa, agora. Isso era uma cafagestagem sem comparação, sem nome, sem igual. Nove horas. Ele iria para Londres ver a namoradinha às nove da noite do dia dezessete de Novembro. Uma coisa incrível, inesperada. Uma coisa que eu nunca imaginaria em vida, porque achava realmente que Estevão também me amava e também queria ficar comigo e ter filhos e fazer planos. E a camisola que eu usava era para ele e as unhas que eu fazia toda semana eram para ele e a depilação e os livros que eu lia eram para saber conversar com ele e. Uma coisa que. Alice Rezende. Sempre na minha vida eu fiz questão de só crer no que vissem os meus olhos - essa era a primeira vez em toda ela que eles não podiam ou não queriam acreditar no que liam. Alice - era para mim a passagem! Era eu quem iria para Londres. Era ele que se queria ver livre de mim. Ele estava se livrando de mim, se poupando da minha desagradável presença. Mandando-me embora.
- Que sinifica isso?
Eu iria para Londres às nove da noite do dia dezessete de Novembro. Ver árvores, muito possivelmente.