você que já veio e você que está

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

João

A certas horas, João tinha cheiro de papel reciclado. Às vezes, cheirava a tinta fresca. João morava sozinho. Saía de casa, todo dia, às sete horas da manhã. Geralmente ia embrulhado no mesmo pijama listrado de toda noite, os pés enfiados no chinelinho japonês que só ele ainda usava. Atravessava a rua e chegava até a padaria, dava um olá para seu Damião, o moço mais velho do que moço do balcão, comprava sete pães - dos quais ele, curiosamente, comia, no máximo, dois -, tomava um suco de clorofila com abacaxi sem o qual nenhuma manhã de sua vida jamais havia começado (e nem ele pretendia que começasse). Voltava para casa com o saco pardo de pães franceses já amassado de tão manuseado, tirava o chinelo na entrada para não sujar o chão recém-varrido por dona Neide, a empregada centenária que já havia servido a sua mãe, a sua avó, a sua bisavó e quem sabe a tatara avó. Afinal, essa mulher não morria, mesmo, sabia-se lá quando teria nascido. Jogava o saco de pães na cesta central da cozinha com pouco cuidado e ia para o banheiro. João tinha o estranho e bastante nojento hábito de somente fazer a sua higiene após essa rotineira ida até a padaria todos os dias. Pois bem, no banheiro, fazia xixi, ligava a torneira, lavava as mãos, escovava os dentes para cima e para baixo, depois a língua, penteava os cabelos duas vezes para lá, duas vezes para cá, uma vez de trás para frente para garantir a harmonia do penteado. Saía do banheiro levando consigo a escova de cabelo - sempre segurada pela mão direita. Chegava no quarto, que não era tão longe: a casa de João não era lá o que se chamaria de palacete. Largava a escova sobre a cama, tirava o pijama, peça a peça, colocava um par de meias lilás - de outra cor não era possível -, dava três voltas pela casa no sentido horário e depois voltava, de costas. Na maioria das vezes, esbarrava num móvel ou outro, mas nada que lhe conferisse um machucado. Chegava novamente no quarto, subia na cama, dava dois pulos sentado e dois em pé, dois pulos sentado e dois em pé, dois pulos sentado e dois em pé. Quando já estivesse suficientemente cansado dessa sequência, deitava-se na cama e alcançava com as mãos o antigo rádio sobre a mesinha de cabiceira. Colocava para tocar o álbum branco dos Beatles, invariavelmente. Enquanto as músicas começavam e terminavam, uma a uma, ele ia abrindo o armário, escolhendo os sapatos - sempre, primeiro, os sapatos -, a camisa, a calça, a jaqueta e, ao passo que mexia o corpo numa espécie de dancinha esquisita ao som da banda, ia se arrumando. Já pronto, faltando apenas colocar os sapatos (afim de não irritar dona Neide), João desligava o som e deixava o quarto. Sempre voltava, porque na maioria das vezes esquecia a sua pasta. Chegava até a porta e, um passo antes de tocar o chão do corredor do prédio, calçava-se. Dava adeus a dona Neide, chamava o elevador e partia. Também na maioria das vezes voltava porque havia esquecido de comer os dois pães. Tocava a campainha, dona Neide atendia, irritada.
- O senhor quer me fazer o favor de ir embora de uma vez, para não atrapalhar o meu serviço? Leve tudo o que quiser levar que depois que eu fechar a porta, não abro mais.
Neide tinha os nervos um tanto aflorados. Era mais cômodo que não se mexesse muito com ela. João, então, em toda a sua pressa, corria para dentro de casa, mas logo recuava para deixar os sapatos na porta, corria de novo para dentro de casa, ia até a cozinha, enfiava os pães no bolso da calça (ele iria comendo no caminho. Tadinho, já deveria ter aprendido que aquilo dava náuseas) e ia embora na mesma correria. Calçava os sapatos e, por fim, deixava o prédio. Mas sempre com a sensação de que faltava algo. Então voltava.