você que já veio e você que está

segunda-feira, 27 de julho de 2009

A carta

Ai meu deus, o que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz, meu deus? – a puta não sabia o que era que ela tinha feito. Aliás, ela sabia sim, e muito bem sabido: ela podia ver na sua frente. Só não sabia como! Como? Ela havia ido ao quarto guardar os sapatos, nisso, voltou ao banheiro e estava ali o homem, todo ensangüentado, dentro da banheira cheia já com a água toda manchada de vermelho. Ao lado da banheira, uma faca empestada do mesmo sangue. De certo se alguém entrasse ali naquele momento, iria culpá-la. Mas eu – sofregamente disse a puta -, uma pobre puta, contratada por apenas uma noite, nem conhecer o homem eu conheço, meu Deus; que intenção, ai meu deus do céu, que intenção teria eu de matar o homem? Ao lado da banheira, uma carta. A puta olhou a carta e refugou com a cabeça, como quem é jesus e foge da cruz. Será que ela abria? Mas eu hein – ela – deus me livre! De abrir essa carta! Abrir, eu não abro. Nem toco! A puta tinha um negocio com deus. Era uma puta religiosa. Tem dessas coisas. Enfim, o homem, o sangue, a puta, a carta. A carta olhava para a puta, como dissesse “me abre, vai, me abre”, a puta olhava para o homem com o maior horror que ela encontrara para sentir, e o homem não olhava para nada, que morto que é morto não olha pras coisas. Teve uma hora – essa hora – em que a puta não agüentou mais de tanto ser olhada pela carta e foi lá e abriu.
“Agora é tarde para pedir que eu volte, Lucinda – Lucinda, nome interessante – pensou a puta -. Não dá mais tempo! Eu disse, não disse? Eu avisei que me matava, não avisei que me matava? – a puta se sentou acompanhada de um leve sorriso na cara – não fui eu! Não fui eu! O homem virou presunto porque quis - mas quem acreditaria nisso? Foi em que esqueceu de pensar a puta – agora não adianta mais, Lucinda, me pedir desculpas. Se queria ter feito isso, tinha que ter feito antes. Pedisse desculpa antes de eu me matar. Eu espero que você sofra bastante, sabe, Lucinda. Sofre bastante mesmo, que nem eu sofri por você quando era vivo – essa é a parte em que o defunto esperava que Lucinda chorasse; aplicar verbos no passado referindo-se a si mesmo sempre funciona, é bem dramático e costuma fazer chorar na certa -. Adeus, Lucinda. Tenha uma boa vida”
A puta estava num êxtase misturado de sentimentos como felicidade, medo, pena, pavor. Ele não tinha nada que ter se matado, não tinha nada – ela refletia consigo mesma. Então que uma mulher vale tanto assim? Uma vida? Terminou de apiedar-se dos problemas alheios assim que percebeu o tamanho do próprio: ela precisava sair correndo dali antes que algum serviçal batesse a porta ou, pior – imagina, meu deus! Uma coisa dessas! –, antes que resolvessem entrar com a chave mestra. Era um motel desses luxuosos. E o problema era o problema que surgiria por trás daquele problema: tudo bem, ela poderia pegar algum dinheiro na carteira do homem, se vestir e ralar peito do local o mais rápido possível, mas todo mundo de fato acharia bem estranho uma moça que visivelmente era uma puta saindo de um motel desacompanhada e pagando a própria conta! Algo com certeza não estaria certo. Então ela viu-se num beco sem saída. Pois se ela fizesse isso, voltariam ao quarto e encontrariam o corpo, supondo com veemência que se tratava de um assassinato. A primeira opção em que pensou foi chamar a polícia. Mas sendo uma puta, quem seria presa era ela (à época, auto-comércio era crime). Podia fingir que não era puta, mas – ah, deixa pra lá, ela não era atriz, não ia dar certo, num ia, num ia. Olhou em volta ansiando por uma janelinha que fosse. Parecia a melhor alternativa, sair pela janela, sem ser vista. Não havia, porém, nenhuminha. E mesmo que houvesse, se alguém a pegasse fazendo isso, seria como se entregar numa bandeja de prata, confessar um crime o qual nem havia sido ela quem cometera. Depois de mil e outras idéias, todas ruins, decidiu-se: parecia-lhe a única solução, a única, senão não teria sido a escolhida. Tomou a faca em mãos e cortou o pescoço, deixando-se cair sobre o corpo do homem.
Por falar na carta, ela haveria de ser encontrada uma hora ou outra. E agora ela olhava para os dois, que não olhavam para lugar nenhum.