você que já veio e você que está

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Adeus ou Não posso te dizer pra onde vou porque não sei

Entrei em seu carro e lá fomos nós. Eu abri a janela porque aquele cheiro de carro - sabe cheiro de carro? - aquele cheiro de carro me dava uma agonia, tipo, um enjôo terrível. Olhava ora para fora, ora para dentro, enquanto fazia movimentos loucos quaisquer com o braço direito contra o vento. Sempre gostei de fazer esse negócio, eu me sinto meio que numa espaçonave, em algum lugar como a lua, em que não tem gravidade. Ele me dizia algumas coisas às quais eu não prestava muita atenção. Há meses que não nos víamos, ele estava diferente, um pouco mudado, mais magro. Os cabelos também estavam meio esquisitinhos, liso dos lados e cacheado no meio, sei lá se isso existe - já viu isso? Nós íamos a um restaurante no Jardim Botânico, mas ele se perdia toda hora, entrou em uma cinco ruas erradas. Ele no volante era péssimo. Às vezes eu dava atenção ao que ele falava, mas ainda assim com o mesmo ar grosseiro de sempre. Eu sou sempre muito grossa com ele. Ele merece. Enfim, falava sobre coisas que não me importavam ou interessavam. Eu cagava, mas respondia, para não ficar parecendo que eu estava cagando. Ele olhava pra mim - como você é linda -, olhava pra longe, olhava pra mim, olhava pra longe. Eu sorria amarelo. Ele na verdade não prestava muito não, eu sabia disso e estava ali só porque ele disse que queria se despedir de mim, que ia viajar para não sei onde, que ia fazer não sei o que lá. Tá bom. - Vou sentir saudade de tudo isso - Viagens passam rápido, quando você perceber já vai estar de volta. Quando eu dizia isso, eu disse umas três vezes, ele me olhava com uma cara melancólica, das mais tristes que eu já havia visto. Uma cara de - coitadinha, não sabe de nada. Eu, hein. Mas não é?
Ele passava pelos lugares e, ao passo que ia se perdendo e se reencontrando no caminho, me dava algumas recomendações. Tudo muito esquisito, é claro. Eu, com vinte e seis anos, sabia muito bem que era pra ter cuidado ao andar na Voluntários à noite, que o metrô não era muito seguro depois das oito horas, que o Koni estava subindo de preço e por isso seria inteligente guardar aquele cartãozinho que te dá um desconto após a compra de dez konis, e vai por aí. Ele me dizia isso tudo repetindo algumas vezes as mesmas coisas - você não me vai ficar andando por aí na Voluntários tarde da noite. E o metrô, você cuidado com o metrô, hein! Que metrô depois de oito horas é um perigo. Guarda também o cartãozinho do Koni que dá desconto porque o preço dos Konis só faz subir. E não me vai ficar andando por aí na Voluntários depois de escuro, hein! -, parecia ausaimer. Era um festival de ''eu, heins''.
Chegou num assunto que eu além de ouvir fiquei prestando atenção e ainda de quebra respondi. Era sobre uma gentinha que eu odiava e que ele amava. Eu disse que ele não prestava. Que aquilo tudo era culpa dele, que ele não prestava, que ele não prestava, ele chorava, eu gritava mais, quanto mais ele chorava mais eu gritava, que aquele chororô estava me dando uma porra de um ódio dele, mas um ódio dele! Saí do carro batendo a porta o mais forte que os meus pequeninos braços me permitiam (bem mais forte que o suficiente), gritando todos os palavrões que constavam no meu acervo léxico - putaqueopariucaralhoseufilhodeumaputaquemerdacomoéqueeufuiconfiaremvocêvocêémesmoumfudidodemerda" - e jurando nunca mais querer olhar a fuça daquele rapaz novamente em vida. Isso foi verdade por um tempo.
Três meses depois lá estava eu, com uma rosa em uma mão e um pedido de descupas pela minha esquentadês. Toquei a campanhia da casa dele. Esperei um tantinho, ninguém abria, resolvi ligar para o seu celular. Caixa postal. Toquei mais uma vez - dona Cida? Estelinha? -, cadê a mãe, a irmã? Ninguém? Abriu a mãe - quanto tempo, minha filha - ela dizia isso com o ar deprimido que nunca tivera. Trajava um longo vestido negro muito simples, não estava maquiada, como eu havia guardado a sua figura em memória. Achei-a pálida e demasiadamente infeliz. Perguntei o que havia acontecido - cadê ele? É que trouxe uma - ela me interrompeu - eu achei que vocês estivessem brigados, ele estava tão mal -, eu me animei nessa hora - ah, nós estamos, sim! Mas quero fazer as pazes. Eu trouxe uma rosa! - dona Cida chorou muito, muito, muito, muito, quando eu disse isso. Mal podia sustentar-se em pé. Foi cambaleando com minha ajuda até o sofá, onde apoiou seus braços, ajoelhada no chão e cabisbaixa. Desesperei. Sacudi a pobre mulher até que ela me falasse o que havia acontecido - ele morreu - disse seca - já tem três meses. Parei.
Eu olhei para qualquer lugar. Não via nada. Só conseguia sentir os meus olhos enchendo-se de lágrimas. O meu corpo todo tremendo como que num choque - o quê? -balbuciei - ele não ia viajar? - tudo isso imóvel. I-mó-vel. - Ele - controlou-se dona Cida, e tentou me explicar com as poucas palavras que lhe restavam - te disse isso para que você não sofresse - mas ele me disse um nome! Um nome! Pra onde ele ia! Pra onde ele foi? Eu vou atrás dele! Eu vou atrás - chorei, choramos. Uma no colo da outra, como mãe e filha. - Ele não te disse para onde ia, minha filha - dona Cida, numa última fala -, porque nem ele sabia.