você que já veio e você que está

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Jeffrey, (e) o mordomo

Jeffrey já teve seus altos e baixos. Mas tudo começou quando resolveu andar com aquele chapéu preto, tipo quepe, do mordomo. Maldito chapéu. Nada disso teria acontecido se Jeffrey não tivesse tido a estúpida idéia de colocar aquele chapéu preto na cabeça.

Dia trinta de agosto de mil novecentos e cinqüenta e sete. Iva e uma segunda moça estão sentadas na frente da lareira central da grande sala, aquecendo-se naquele inverno cruelmente frio de Moscou.

- Gostaria de um chá, madame?

Jeffrey havia, de uns tempos para cá, tornado-se um tanto quanto prestativo.

- Ah, coitadinho de Jeffrey. Enlouquecido. Totalmente pirado. – Iva não se havia feito muito clara até então.
- O que há com Jeffrey? – tinham uma convidada esta noite. Noralina, menina-moça, de uns já dezoito anos. Alva como a branca de neve, a da historia infantil. De uns cabelos meio arruivados, alaranjados, até. Não a ponto de serem feios; muito pelo contrario, Noralina era de uma beleza exótica, de um requinte na aparência. Os espelhos gostavam dela, e bastante. Os homens também. Havia vindo jantar em nome de seu pai, Bernitus, para tratar de negócios que interessavam a ambas as famílias.

- A madame não respondeu se gostaria de um chá, madame.
- nda tão louco Jeffrey!
- Mas o que é que tem ele?
- Anda achando que é o mordomo, depois que passou a usar este chapéu. Ao mordomo que é mordomo de verdade, ele faz questão de servir e tratar como se fosse o patrão.
- Ora, pobre Jeffrey! Ficou então tantan?
- O pior é que não sabemos se é algo de definitivo. Isso me tem entristecido tanto. Jeffrey nem se deita mais em nossa cama. Recusa-se. Diz que é antiético dormir na cama do patrão e, ainda mais – pior -, junto com a patroa! Nem me lembro de quando foi a ultima vez que fizemos sexo.
- Mas onde já se terá visto?!
- Não se viu! Nunca se viu! Obriga-me a dormir ao lado do mordomo, e como se fosse a coisa mais natural do mundo. Acorda-nos pela manhã, a mim com um chamado sutil,

- Iuhúú, madame? O galo canta, o mordomo desperta, e desperta a patroa!

e ao mordomo com o jornal do dia. Prepara a mesa do café da manhã, onde coloca no lugar que costumava ser seu o pão com manteiga e o café com leite que ele tomava enquanto ele ainda era ele, e depois as torradinhas, as mesmas torradinhas que ele comia. Depois escolhe a roupa do mordomo em seu antigo guarda-roupa,
- O mordomo é quem deve estar divertido!
- escova-lhe os dentes,
- Que nojo! É duro de acreditar!
- amarra-lhe os sapatos e enfim abre a porta para que ele pegue o carro, cujas chaves o mesmo faz questão de entregá-lo. A mim o mordomo beija esquisito, olhando ora para mim, ora para Jeffrey, como quem pergunta “é mesmo para eu fazer tudo isso, senhora?”. Oh, é tudo tão estranho, Noralina, que eu nem sei o que é que se há de fazer!
- É possível que Jeffrey esteja passando por uma crise de identidade.
- Está é doido, é mais além!
- Já pensou em levá-lo a um psicanalista?
- E tenho como? A toda hora ele está me lembrando de compromissos a que eu preciso comparecer, apressando-me para aprontar os cabelos, ou enfurnado na cozinha, preparando o almoço ou o jantar! Não há maneira de convencê-lo, já que nem um segundo eu tenho para me comunicar com ele, pois ele não deixa!
- Oh, eu conheço alguém que pode vir vê-lo.
- Por que não tentas tu mesma te aproximar? Tente arrancar algo dele! Veja o que ele diz e me conte, depois.

- Olá, Jeffrey.
- Senhorita – Jeffrey curvou-se cordialmente. – deseja algo em que posso ser útil? De repente um chá?
- Não, obrigada, estou muitíssimo bem. Frio aqui, não?
- Frio, senhorita? Temos cobertores de lã nos aposentos da patroa. Pegarei um para a senhorita e logo retorno. Certamente que irá aquecê-la... – virando-se já rumo as escadas.
- Espere, Jeffrey – Noralina neste momento segura o braço de Jeffrey.
- Oh, senhorita, por favor. Não creio que seja de bom grado ter contato físico com um empregado.
- Jeffrey, você não é empregado desta casa.
- Como diz, senhorita?
- És o patrão. Marido da senhora Iva. Teu nome é Jeffrey Opigno, e o nome dela é Iva Opigna. Vocês moram aqui, os dois. E o real mordomo chama-se Edno. Por favor, tente recordar-se, estás fazendo sua senhora muito sofrer com todo esse desvario.
- Sou um reles empregado, senhorita.
- Não és! Você é o construtor deste império que é a sua casa e é também o chefe de sua família! Lembra-te de tuas filhas, Clera, Frandeza e Polya, de teu pai, Ovan Opigno. Tudo isso te pertence. Somente a ti é que tudo isso pertence!
- Estás, com isso que dizes, ofendendo o meu patrão, o senhor Edno, que tanto trabalhou e suou para erguer o patrimônio que possui. Ele, um homem decente, tão bom e tão trabalhador, que por anos a fio se multiplicou em mil para adquirir a riqueza que hoje é de seu domínio. Que sacrificou tanto tempo e tantos prazeres pelas responsabilidades de pai e marido que havia contraído em sua vida, e tão cedo, o brilhante senhor Edno.
- Mas não vês que tudo isso quem construiu foi você, homem? Este é você!
- E se ofendes meu patrão, ofendes também a mim!

Iva percebeu que o tom da conversa elevava-se cada vez mais e, num ato reflexo, decidiu envolver-se.

- Jeffrey, por favor, pelo amor de Deus!
- Minha senhora, por acaso ouviu tudo o que esta senhorita estendida em minha frente ousou dizer?
- Ela disse a verdade, Jeffrey!
- A verdade? Então compactuam ambas? Pobre senhor Edno, não merece as horríveis pessoas que o cercam.
- Você não está bem, Jeffrey, você está com problemas!
- Com problemas estão as duas, senhora e senhorita! Com o perdão da palavra, se agrido a senhora, peço que me desculpe, mas é ao patrão que devo extrema fidelidade.
- Esta casa está bem fria e por isso eu vou cantar, e quem sabe um lalalá vai me aquecer... – Iva canta um trexo da música que ela e Jeffrey cantavam quando sentiam muito frio, para tentar reavivar sua memória.
- Mas isto é um absurdo! A senhora se atreve a tomar tais intimidades comigo, as mesmas que toma com o senhor seu marido! Não tens então vergonha?
- Jeffrey! Como pode dizer isso? Edno é um empregado! Meu marido é você – a mulher totalmente desolada, já sem saber o que fazer, vê-se perdida.
- Não consigo ouvir! Vou tapar meus ouvidos! Se o senhor Edno ouve isso, perde em mim uma confiança que já vem depositando há anos! Prefiro morrer a assistir a degradação do senhor Edno ao ouvir tão sórdidas, ingratas, injustas, imorais palavras!
- Jeffrey, uma ultima vez, tente escutar! Meu amor!
- Nem mais uma palavra. Eu me demito!