você que já veio e você que está

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Os assassinatos da bonita Londres

Na bonita Londres, quase todo o frio é possível. E Jackhile sabia disso.

Jackhile adorava charutos de framboesa. Isso é algo de importante.

Todo dia de manhã, Jackhile dava três voltas para a esquerda em seu quarto e agachava quinze vezes, tocando assim as mãos no chão de forma que alongasse seus glúteos. Ela abria o armário, escolhia a sua roupa, que era quase sempre um casaco três quartos de alguma cor que doesse bastante os olhos. Calçava o par de sapatos ideal e fazia da mesma forma com a peruca, que haveria de ser colorida identicamente à veste.
Geralmente colocava os pés para fora do apartamento magnificamente decorado por Grettha Louz, a mais famosa decoradora londrina, e sentia frio. Mas não voltava para colocar meias-calças, afinal, ela não tinha tempo, nunca. Em vez disso, para aquecer-se, acendia o seu charuto preferido enquanto andava apressadamente: não que isso ficasse feio, ela o fazia com uma elegância impar. Alias, vale lembrar que Jackhile era, muito provavelmente, a mulher mais bonita de toda Londres. Era impossível não reparar em seus cabelos e olhos negros que saltavam, como em relevo, desvencilhando-se de toda a alvura da face. E, logicamente, não podemos esquecer-nos de citar o carisma da mulher, que era algo de fato invejável. Enquanto ela andava, acompanhada pelo balançar de seus vastos e cartesianos quadris, aproximava-se cada vez mais da Freddie’s, coisa que provocaria uma certa reviravolta em seu estômago, não fosse a habilidade de lidar com situações que pareceriam dificílimas para seres humanos genéricos com que ela nascera. Talvez devamos ambientar a Freddie’s para que seja possível a compreensão de pelo menos um terço do drama. A Freddie’s, com esse nome de loja de roupas de esporte ou lanchonete cool da alta burguesia inglesa, era um necrotério. Jackhile freqüentara o local todos os dias durante quatro meses, religiosamente, chegando pelo mais cedo da manhã e deixando-o à tardinha, naquele meio tempo em que ainda não escureceu mas já não está claro. Seria interessante divulgar também a informação de que Jackhile tratava-se da mais renomada detetive da cidade londrina. A primeira vez em que ela pisou com os seus chiquérrimos sapatos no lugar aconteceu porque a procurou Donavan, homem dos traços grosseiros e marcantes que desconfiava que sua mulher estivesse tendo um caso com o caseiro de sua mansão. Sim, é verdade que para descobrir que a sua mulher está tendo um caso com o caseiro basta prensá-lo na parede e pressionar o seu pescoço suficientemente forte de forma que ele confesse o adultério; não que Donavan não tivesse a base física necessária para isso, mas ele possuía diferentes intenções além desta. Basicamente na primeira vez em que abriu a boca para falar, a detetive pôde perceber alguns sinais um tanto quanto inusitados a respeito daquela figura, entre um e outro flerte. No final do encontro, todos os livros sobre física quântica que Jackhile lia como passatempo e os porta-retratos emoldurando fotos em que ela sempre aparecia sozinha e fatal encontravam-se desleixadamente jogados no chão, pois a mesa estava demasiadamente ocupada apoiando os corpos dos dois, que, a essa altura, faziam o sexo mais agressivo e louco de suas vidas. Jackhile não tinha o costume de se prestar a esse tipo de papel, mas a esse homem, em especial, ela não pestanejou antes de ceder à vontade de se emprestar por uns dez minutos. Como pensava que seria. Mas não foi, ou foi, só que por algo mais do que apenas uma dezena de minutos. A estupenda fèmme fatale que representava Jackhile rendeu-se ao mal mais necessário que paira sobre a face da terra: os encantos (ou, no caso, desencantos) de um homem de pulso. Ele a chamava puxando pelos cabelos, beijava-a rápida e fortemente, segurava-a pelo braço como uma mãe raivosa brigando com o seu filho. Já era tarde para que Jackhile se livrasse de Donavan quando percebeu que ele se tratava de um psicopata, o que ocorreu quando ele assassinou sua mulher e o caseiro, sem ter certeza alguma de que a traição fosse verdade. Jackhile viu-se pela primeira vez sem saber o que fazer. A relação dos dois já havia avançado o suficiente para que ele se conformasse caso ela quisesse a separação sem dar motivos convincentes, afinal, ela temia por sua vida. Jackhile não encontrou outro jeito a sair desta encruzilhada a não ser cometer um homicídio contra o ex-cliente que tomara proporções, as mais sórdidas, em sua vida. O corpo, ela queimara no quintal da casa que pertencera a uma tia já morta, no interior, e que ela usava como depósito de evidências. Perceba que essas heranças acabam tendo funcionalidade. Fez isto entre uma lágrima de pavor e um suspiro de alívio. Tudo com o cuidado necessário para que não fosse suja a camurça do Chanel amarelo que ela usava no dia do assassinato. Nunca houve suspeitas acerca da morte de Donavan. Até porque ele não deixara ninguém nesta esfera para sentir a sua falta. Jackhile precisou comparecer ao necrotério para deixar as cinzas, alegando tê-las encontrado em um banco de praça. E ia até a Freddie’s, rezar, religiosamente, todos os dias, durante quatro meses, chegando pelo mais cedo da manhã e deixando-a à tardinha. O que o cliente faz com a pessoa de quem suspeita não é, em nenhuma instancia e sob nenhuma hipótese, responsabilidade do detetive. Tampouco o que o detetive faz com o cliente.