você que já veio e você que está

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Dormes

Eu controlava o relógio despreocupadamente, como quem sequer o fazia. Três e meia da tarde. Era a hora.
Corri para a janela de onde sabia poder te alcançar com os olhos sem nenhuma esperança. Isso porque eu já o repetia há centenas de dias e, nunca, nada. Neste dia foi diferente. Você estava: gritei teu nome do alto e nas primeiras quinze vezes você não me escutou. Talvez tenha até ouvido um ruído ou algo do tipo, mas nunca olhou. Tentei uma décima sexta vez e eis que você começou a procurar com os ouvidos, olhos e a cabeça, de onde teria saído o som.
Olhou para cima.
Seria um anjo?
Era eu. Você não tinha visto ainda. Gritei com mais força, agora eu sabia que você me ouvia. Eu sabia.
Era eu.
Você e eu me olhamos. Você de fora e eu de dentro - de fora, você provavelmente via a mim como a mesma menina de sempre; de dentro, eu via o seu sorriso, que refletia nos meus lábios e os curvava também para cima, imitando os seus.
Você e eu te olhamos.
Sou eu.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Pessoas - poeminhas carnavalescos

Eu
Tu
Ele
Nós
Vós
Eles
Eu e tu
já não bastamos?
Para que tantas pessoas?

Canelas - poeminhas carnavalescos

Rasguei um pedaço de papel
do bar para
te escrever
Gostei de tuas canelas

Dobrei-o em quatro
Entreguei ao garçom disse
Entregasse a bela
Donzela ali sentada

Multidão: o garçom não te
reconhecera avistara
Mas sim eu.
Pediu-me que te descrevesse
Disse eu apenas

A donzela da bela canela

Ele espantado amedrontado
Reconheceu por meu dedo em
Riste
Estavas no andar de cima

O garçom alcançou-te
Entre bandeja e outra
Atrapalhado entregou-te
O bilhete
Disse ser do cavalheiro
Pintoso
Do andar de baixo

Agradeceste em toda tua
Graça
Pôs-te a ler - lia
cima a baixo
baixo a cima

Olhaste para mim enfim
Lá estava eu brilhando
Os olhos vibrando
As canelas

(No manuscrito isso foi realmente escrito num pedaço rasgado de papel de bar)

Nossos olhos - poeminhas carnavalescos

Meus olhos estranhos olhos (e também os teus) não pararam de te fitar desde os primeiros segundos que te viram como é possível talvez estejam hipnotizados talvez você me tenha encantado mas sempre haverá a possibilidade de tudo não se passar de outrora separadas
Quatro bolas de gude

Norte - poeminhas carnavalescos

O mundo -
disse -
É muito grande ou muito pequeno
Se o tens como grande
Sorte nossa termo-nos encontrado
Se o tens como pequeno
Mesmo assim não desmereçamos a sorte nossa

Afinal de jeito ou outro
Estamos aqui
mesmo que um pouco tortos
Isso - se fores pensar - é quase milagre
quase quase impossível
mas tão-só-quase que estamos aqui.

Possíveis redondos amores tontos
Te amo! Te amo!
Avanço te perco pelo caminho
Volto te busco
E vamos
Embora pelo norte que lá o vento é fraco

Ficaremos bem se estivermos sós
Te quero! Te quero!
Fuja te acho
Sei que queres
me queres
Fujo me perco
Fojes te alcanço
Enquanto corro te vejo ao longe
brincando com folhas sentado
Esboço sorriso me olhas foges
Te acho! Te acho!
Te laço te caço reclamas
Nem ligo
Te calo a boca com beijo
Voltas manso comigo
E vamos
Embora pelo norte que lá o sol é forte

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Bom tom

São quatro da manhã
e chove
Penso em ti e sei que provavelmente
dorme
Com quem é que me aflige;
Comigo é que
não é
Minha cama abriga a mim
E a sua
outra mulher
Choro rios e logo me canso
Pensar dói,
Então eu danço
Com uma taça de vinho do porto
Me balanço
solitária
Saudosa, menina, da infância; saudosa, mulher,
do canalha
Encaro o telefone enquanto espero
tua ligação
Mas se não vem, não me decepciono
Pois sabia aguardá-la
em vão

(continua...)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Destino 2

O ônibus devia ter uns quarenta lugares e, fora o do motorista - que, obviamente, para garantir o movimento do automóvel, deveria ter sempre o seu dono - e o do cobrador, o meu era o único ocupado. Já tinha percorrido dois bairros. Chovia intensamente; as janelas estavam cobertas, todas, por neblina. Eu desenhava coisinhas-sem-sentido-ou-graça com o dedo onde a neblina era mais concentrada, enquanto encarava o nada com o sono de quem está preso no trânsito há horas. Laranjeiras. Ia para Laranjeiras, 570. Ou pelo menos tentaria, se Deus e o tempo me ajudassem. Não estavam ajudando. Recostei a cabeça levemente e, antes que pudesse perceber, caí no sono. Um sono frágil, precocemente interrompido por algum barulho externo. Abri os olhos e percebi alguém correndo em direção ao ônibus - era um homem. Devia ter uns vinte e poucos anos, no máximo. Pele e olhos claros, um boné (meio fora de moda) e uma mochila. Foi só no que reparei. Eu, o motorista, o cobrador, os outros trinta e oito lugares e ele. Agora, trinta e sete. Felizmente. Porque ele era lindo. LIN-DO. De morrer. Lindo mesmo, tipo gente de capa de revista. Olhou-me por três segundos inteirinhos. Olhei também um pouco para ele entre os milésimos dessa eternidade. Os meus olhos, na realidade, oscilavam entre olhá-lo e desviar-se do olhar dele. Timidamente, é lógico, afinal, eu! Sentou-se dois bancos à minha frente e de vez em quando eu podia reparar olhadas de rabo de olho em minha direção. Uma cena como que de filme; natural seria ele me observar, afinal, não era todo dia que algo como aquilo poderia acontecer. Poderíamos ter conversado e nos conhecido e nos tornado amigos e namorados e casados e pais e avós e amantes além-vida, fosse aquilo coisa do destino. Mas, não; eram apenas duas pessoas solitárias indo a Laranjeiras numa noite fria.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Ignore!

As meias furadas dos pés sem sapatos remexiam-se, lentamente, para lá e para cá, enquanto as mãos, ágeis, viravam as páginas, uma a uma, em questão de instantes. As pernas, como que nervosas, balançavam-se com mais pressa do que os olhos liam as linhas. Cada palavra para ele significava um mundo - cada uma palavra, um mundo. E de tantos mundos ele se enchia à cada nova página, que sentia-se quase como que um planeta. Algumas diferenças, porém: o seu sol era negro e a lua era ela. Ele, em vias de certeza, não chorava como um paciente (portador de amor agudo). Não chorava porque sabia-se apenas mais um dentre os milhões, bilhões, trilhões de enfermos internados pela mesma causa no (escuro) hospital do coração - ou, no mínimo, do cérebro restrito ao único pensamento em que se era possível pensar. Havia chovido horrores naquele dia e as poças d'água ocupavam cada milímetro do chão da cidade. À medida em que lia, lia, lia; nela, nela, nela é que pensava. Seria possível que este mal viesse para o bem, ou uma traquinagem do destino o faria, deveras chorar? A dor que se sente, para quem sente é única; para quem assiste é espetáculo; para quem morre é insensível; para quem vive é suportável; para os que amam é mártir; para os que odeiam é amor; para os que viajam é lembrança; para os poetas é inspiração; para quem consola é esperança; para quem esquece é vazio; mas, para quem chora, é dor, apenas. Talvez devesse ele, então, chorar, para sentí-la (a sua dor) somente no limite dela mesma, do essencial. Porque se fosse preciso morrer-se um pouco para viver-se em pleno, qual o mal? Ele não tinha medo do amor; tinha medo é dos amantes. O amor, em si, era algo de maravilhoso - pensava. Era o que, de fato, dava sentido às coisas. E graça. Numa de suas divagações matinais, passou por sua cabeça a seguinte proposição: só é feliz quem é pleno e só é pleno quem é feliz. Mas e daí?

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Te amo

Eu, aos tropeços, esperando-te na frente do bar.
Eu, não me esqueço, sei que não mereço te amar.
O dia todo pensei em ti, até que pensei poder te encontrar
Vim cambaleando até aqui, com medo de te encabular
Mas, se puderes, venhas ter comigo
Preciso-te duas palavrinhas falar
Mas, por favor, amor, não te demores,
os segundos são ágeis
E eles não hesitarão em passar
Sou bêbado de bar
Sou bêbado de amor
Desculpa-me se te causei dor
Sou bêbado de fúria e razão, não te vás, fiques

Espera! Espera!
Prometo já me terminar

Tu sentes aí que vou já explicar
Desculpa-me se sou um vulgar, é que sem ti, para mim,
não dá.
Eu sei e não me esqueço, não mereço te amar.
Só não tomes para ti o meu pesar, não resista a se deixar encantar
E, então, amor, possa me desculpar.
Te amo como a lua da noite, que tenta tocar o mar
Mesmo sabendo que não conseguirá; mas que, com seus reflexos, se vê nele espelhar;
Como o vento que leva as coisas boas, mas também as más;
Te amo como aquele cavalheiro àquela senhora nunca ousou amar
(não fiques zangado, bom cavalheiro, é que preciso convencê-la)

Te amo porque adoro sofrer
Tu és o meu mais delicioso mártir.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Rominho

Eu sou um cara bastante moderno. Super gosto de todo mundo, super me enturmo, super conto piada, super rio, super sei conversar sobre qualquer coisa.

Mas nem sempre foi assim.

Rominho, como me chamavam há uns quinze anos atrás, sempre foi um menino - assim digamos - problemático. Eu, quando era pequeno, usava óculos, aparelho dentário, tinha poros entupidos o suficiente para fazer brotar espinhas no mundo inteiro e um nariz que se parecia mais com um relevo bem no meio da minha (nada harmônica) face. As garotas nunca foram um problema para mim. Isso porque para serem um problema, precisariam ser alguma coisa para mim. E todas, todinhas elas faziam a mais absoluta questão de não ser nada para mim. O meu cabelo sempre foi uma coisa bem estranha. Bem estranha. Meio que nunca foi, de fato, um cabelo. Era só... uma coisa de qualidade duvidosa pairando sobre a minha cabeça. Quando se é criança, não se dá a mínima à aparência. Você pode estar de pochete, raider, boné e regata que aquela sua amiguinha loirinha, lindinha, magrinha, cujos peitinhos já estão - precocemente - começando a despontar, vai continuar querendo ir brincar de gangorra contigo. Agora, adolescente é um capeta. Bicho safado, danado. A tal da loirinha fofinha que estava cagando para o que você vestia ou deixava de vestir (se você deixasse de se vestir também não seria problema, enquanto criança. Seria até fofinho) agora comenta com todas as porras das amigas sobre como você está escrotamente mal vestido e, pior, diz que não ficaria contigo ja-mais.
E eis que essa foi a minha vida. Até a adolescência, eu era uma das pessoas mais sacaneadas da face da terra. Até que, inspirado em toda a magia da minha querida e sempre favorita banda Aborto Elétrico, resolvi deixar a revolta tomar conta desse corpitcho e me dedicar à vida do crime.

Brincadeira.

Mas eu realmente virei uma nova pessoa. Troquei os óculos de grau por escuros, o aparelho, eu tirei (que se fodessem os dentes), nunca mais usei pochete ou regatas. Andava de moto para lá e para cá e as meninas começaram a se interessar, ainda que vagamente, por mim. O meu corpitcho nunca havia estado mais gostoso, pois agora eu malhava sem parar. Não havia quem resistisse ao meu charme. Mesmo assim, passados os anos, a adolescência, eu me via como um adulto vazio, esdrúxulo, desprovido de qualquer boa história para contar aos meus netos (o que também não seria problema, pois eu nunca os teria, já que para isso eu teria que arrumar uma mulher, fazer um filho com ela para que este sim fizesse um outro que eu pudesse chamar de neto). Olhando-me fixamente no espelho do Rio Sul (e, para piorar, eu ainda era o único que frequentava esse shopping super maneiro), tive o meu mais profundo momento de reflexão da vida. Percebi que eu tinha, sim, uma ótima história para contar aos meus netos. Ou, se eu não os tivesse, para qualquer outro que se habilitasse em escutá-la: a minha história.

Foi então que resolvi ir para casa e criar um blog.

Dendê

Minha vida é um cabaré
e você sabe como é!
Mal sinto o meu pé
tocar o chão.
É como uma gaivota que parte, deixando a Terra, rumo à Marte;
ela vai sem direção.
Minha vida é o ouvido do mundo, é vivida a fundo
e é pura paixão.
Eu sou como agulha, que espeta até que fura, eu sou como um milhão.
Mas você,
não venha tentar me entender,
não venha tentar me mudar,
eu sou bicho do mato e contigo eu não bato,
então não me olhe,
olhe seu sapato.
Comigo, não,
camarada,
te ensino
depressa
a tratar uma
bela
donzela
que de boba não tem nada.
Você traz uma rosa e eu já vim com o buquê, você vem com a pergunta e eu te digo o porquê.
E mais, te digo porquê:
é que nesse seu bobó está faltando dendê.

Café para o contador - textículo

- Já vai, seu Alfredo, já vai!
Quatro minutos e trinta e três segundos já haviam se passado desde que dona Alfreda, a secretária de nome homólogo ao do patrão (só que, obviamente, no feminino) deixou a sala de reuniões para passar um café.
Entre a saída e o atual momento, dona Alfreda já havia deixado e adentrado a sala umas trinta e sete vezes, cada nova vez com uma nova xícara de café.
- Café, dona Alfreda, tem que ser preto. Preto! A senhora me escuta bem: eu, há cinqüenta e dois anos, sou um contador renomado e respeitadíssimo por qualquer um que me circule. A senhora veja bem: como é que eu, Alfredo, contador, posso tomar um café amarelo, dona Alfreda? Café, dona Alfreda, tem que ser preto.
A coitada da secretária já não sabia mais o que fazer para deixar o café negro como fazia questão o patrão. Sempre que passava o pó, ele ia adquirindo uma cor amarelada que, comprovadamente, seu Alfredo desprezava. Abriu a porta da sala e pôs o pé esquerdo rente à porta, como quem tem certo receio de entrar. Pela trigésima oitava vez, mas esta, bem menos amigável do que outrora, dona Alfreda se punha frente ao patrão.
- O senhor quer o seu café preto, seu Alfredo? Enfie-o na merda e veja se o fica.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

João

A certas horas, João tinha cheiro de papel reciclado. Às vezes, cheirava a tinta fresca. João morava sozinho. Saía de casa, todo dia, às sete horas da manhã. Geralmente ia embrulhado no mesmo pijama listrado de toda noite, os pés enfiados no chinelinho japonês que só ele ainda usava. Atravessava a rua e chegava até a padaria, dava um olá para seu Damião, o moço mais velho do que moço do balcão, comprava sete pães - dos quais ele, curiosamente, comia, no máximo, dois -, tomava um suco de clorofila com abacaxi sem o qual nenhuma manhã de sua vida jamais havia começado (e nem ele pretendia que começasse). Voltava para casa com o saco pardo de pães franceses já amassado de tão manuseado, tirava o chinelo na entrada para não sujar o chão recém-varrido por dona Neide, a empregada centenária que já havia servido a sua mãe, a sua avó, a sua bisavó e quem sabe a tatara avó. Afinal, essa mulher não morria, mesmo, sabia-se lá quando teria nascido. Jogava o saco de pães na cesta central da cozinha com pouco cuidado e ia para o banheiro. João tinha o estranho e bastante nojento hábito de somente fazer a sua higiene após essa rotineira ida até a padaria todos os dias. Pois bem, no banheiro, fazia xixi, ligava a torneira, lavava as mãos, escovava os dentes para cima e para baixo, depois a língua, penteava os cabelos duas vezes para lá, duas vezes para cá, uma vez de trás para frente para garantir a harmonia do penteado. Saía do banheiro levando consigo a escova de cabelo - sempre segurada pela mão direita. Chegava no quarto, que não era tão longe: a casa de João não era lá o que se chamaria de palacete. Largava a escova sobre a cama, tirava o pijama, peça a peça, colocava um par de meias lilás - de outra cor não era possível -, dava três voltas pela casa no sentido horário e depois voltava, de costas. Na maioria das vezes, esbarrava num móvel ou outro, mas nada que lhe conferisse um machucado. Chegava novamente no quarto, subia na cama, dava dois pulos sentado e dois em pé, dois pulos sentado e dois em pé, dois pulos sentado e dois em pé. Quando já estivesse suficientemente cansado dessa sequência, deitava-se na cama e alcançava com as mãos o antigo rádio sobre a mesinha de cabiceira. Colocava para tocar o álbum branco dos Beatles, invariavelmente. Enquanto as músicas começavam e terminavam, uma a uma, ele ia abrindo o armário, escolhendo os sapatos - sempre, primeiro, os sapatos -, a camisa, a calça, a jaqueta e, ao passo que mexia o corpo numa espécie de dancinha esquisita ao som da banda, ia se arrumando. Já pronto, faltando apenas colocar os sapatos (afim de não irritar dona Neide), João desligava o som e deixava o quarto. Sempre voltava, porque na maioria das vezes esquecia a sua pasta. Chegava até a porta e, um passo antes de tocar o chão do corredor do prédio, calçava-se. Dava adeus a dona Neide, chamava o elevador e partia. Também na maioria das vezes voltava porque havia esquecido de comer os dois pães. Tocava a campainha, dona Neide atendia, irritada.
- O senhor quer me fazer o favor de ir embora de uma vez, para não atrapalhar o meu serviço? Leve tudo o que quiser levar que depois que eu fechar a porta, não abro mais.
Neide tinha os nervos um tanto aflorados. Era mais cômodo que não se mexesse muito com ela. João, então, em toda a sua pressa, corria para dentro de casa, mas logo recuava para deixar os sapatos na porta, corria de novo para dentro de casa, ia até a cozinha, enfiava os pães no bolso da calça (ele iria comendo no caminho. Tadinho, já deveria ter aprendido que aquilo dava náuseas) e ia embora na mesma correria. Calçava os sapatos e, por fim, deixava o prédio. Mas sempre com a sensação de que faltava algo. Então voltava.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Elocubrações

Fazia um frio fora do normal quando a fechadura da porta fez o seu primeiro barulho do dia. Eram sete horas da manhã e eu estava mais para uma sonâmbula que passou a noite em claro com os olhos vidrados no teto e o corpo largado na cama, embora já me tivesse levantado. Vestia a camisola rosa de cetim que o meu pai me deu no dia em que fiz quinze anos, enquanto esperava com uma ansiedade estranhamente nervosa ver o rosto que surgiria, findado o barulho da fechadura, o da porta se abrindo, o da porta se fechando. Sentada no sofá, mudei umas três ou quatro vezes de posição durante aqueles cinco segundos que levava qualquer pessoa que andasse da porta de casa até a sala. Os mesmos que levou, naturalmente, Estevão. Olhou para mim e pediu que eu me levantasse.
- Queria que você se levantasse.
Eu obedeci, como haveria de ser. Levantei-me e olhei fundo em seus olhos castanhos, que ele cismava que eram verdes. Estevão sempre teve a estranha mania de sorrir com os olhos. Como eles eram pequenos, logo se fechavam a cada sorriso ou gargalhada. As pessoas o perguntavam se ele conseguia ver alguma coisa enquanto sorria e, divertido, sempre, ele dizia que via muito melhor do que quem estava de olhos abertos.
- Está vendo isso aqui? Uma passagem - ele disse -, uma passagem.
Uma passagem. Então isso provavelmente queria dizer que nós iríamos viajar! Vijar... há quanto tempo não viajávamos. Nós, eu e Estevão. Só nós dois. Nós dois. Espera. Dois. Uma passagem. Dois? Uma passagem? Então quem iria viajar? E, sozinho? Para onde?
- Para quem é a passagem, meu amor? E para onde? - perguntei para ele, enquanto sofria de uma aflição contida e percebia em seus olhos certa dificuldade de me encarar. Três segundos sem palavras. Um olhar de Estevão para o chão e percebi imediatamente que a passagem era só para ele. Canalha! Cafageste! Iria embora como um cão sem dono e me deixaria sozinha, aqui. Filho da puta! Isso não se faz. Logo mais o meu corpo inteiro se deixou tomar de uma fúria que de tão intensa não cabia dentro de mim. Minhas mãos moveram-se num movimento involuntário e quase que subconciente até as dele e, com a maior força que eu poderia aplicar, arranquei delas aquela maldita passagem. Mas se ele pensava que. Era mesmo um imbecil. Que iria, assim, sem mais nem menos, embora, sem satisfação, sem uma palavra, sem. Ah, ódio. Não, ele não iria. Eu não deixaria. Dá cá essa passagem, larga, me deixa ver. Quero ler para crer no que estou vendo. Estevão recuou com alguns passos; ele, provavelmente, não esperava de mim esse tipo de reação. Nunca fui uma pessoa agressiva, a menos que fosse provocada. E me parecia que para ele aquilo não era provocação alguma. Parecia pelo jeito que ele me olhava, assustado, desentendido. Canalha. Canalha! Passei os olhos com a pressa de quem está transbordando raiva pelas entranhas. Londres. Era para Londres que ele ia. No acerto ele devia ter arrumado alguma namoradinha nova ou amante em Londres. Sim, porque não haveria de ser para ver árvores que ele iria para londres, haveria? E por quê, mais? Dia dezessete de Novembro. Dali a uma semana. Ele havia entrado na minha casa para me informar de que partiria em uma semana. E com que frieza, com que falta de afeto ele. Filho da puta. Os meus olhos oscilavam entre os dele, o papel e o chão, que, de vez em quando, eu olhava para ganhar alguma força. Eu simplesmente não podia compreender porque ele me deixaria. Se ele me tinha nas mãos. Se eu o amava tanto. Estevão era, de fato, o amor de toda a minha vida. Para mim, era Estevão ou mais ninguém. Como? Como? Não havia tomado os meus remédios naquele dia. Os meus nervos estavam à flor da pele. E mais essa, agora. Isso era uma cafagestagem sem comparação, sem nome, sem igual. Nove horas. Ele iria para Londres ver a namoradinha às nove da noite do dia dezessete de Novembro. Uma coisa incrível, inesperada. Uma coisa que eu nunca imaginaria em vida, porque achava realmente que Estevão também me amava e também queria ficar comigo e ter filhos e fazer planos. E a camisola que eu usava era para ele e as unhas que eu fazia toda semana eram para ele e a depilação e os livros que eu lia eram para saber conversar com ele e. Uma coisa que. Alice Rezende. Sempre na minha vida eu fiz questão de só crer no que vissem os meus olhos - essa era a primeira vez em toda ela que eles não podiam ou não queriam acreditar no que liam. Alice - era para mim a passagem! Era eu quem iria para Londres. Era ele que se queria ver livre de mim. Ele estava se livrando de mim, se poupando da minha desagradável presença. Mandando-me embora.
- Que sinifica isso?
Eu iria para Londres às nove da noite do dia dezessete de Novembro. Ver árvores, muito possivelmente.