você que já veio e você que está

domingo, 4 de janeiro de 2009

Traição

(O casal discute tudo em tom de conversa, sem exceder-se em parte alguma do diálogo)

A - eu quero que você pegue todas as suas coisas e saia da minha casa agora.
B – por que você ta fazendo isso? Eu te amo.
A – ama? Ama o cacete! O que diabos é amor pra você? Cartinha? Orquídeas brancas, as mais bonitas, as mais caras, que você compra no dia seguinte que faz a merda? Muito engraçado, bela definição de amor.
B – voce ta louca, o que foi que eu te fiz?
A – o que você fez? Não sei, me deixa pensar... é, é mesmo, meu amor, me desculpa, talvez a calcinha vermelha que eu encontrei hoje de manha embaixo da minha cama seja minha mesmo, aquele fio dental de puta, e eu não me lembro!
B – um fio dental? É por isso que você vai jogar três anos e meio de casamento fora? Por causa de um fio dental?
A – o fato de você não ser um hipopótamo não-pensante te faz capaz de compreender, meu querido, que não é pelo fio dental, mas sim pela dona dele, que não, não sou eu. É, muito provavelmente uma putinha de esquina que você encontrou, trouxe pra minha casa e comeu sobre a minha própria cama! A nossa cama.
B – você nunca teve ciúmes de mim.
A – o quê? Você surtou completamente? Agora alem de assumir que você me chifrou bonito, você justifica, colocando a culpa em mim?
B – ah, vai. Admite. Você nunca foi de me colocar rédea. (senta na cadeira, acende um cigarro, rindo) Lembra daquele reveillon, que a gente passou na casa da sua tia? A menina, tua prima, como é mesmo o nome? Ficou toda pra cima de mim, se jogando mesmo, teve uma hora que ate deitou na cama em que eu tava, disse que tava com frio, queria que eu aquecesse. Você chegou no quarto, abriu a porta, deu de cara com a menina deitada do meu lado, quase em cima de mim e nem reclamou, não disse nada, não me perguntou nada, não chamou a menina de vadia, não armou escândalo. Você nem se preocupou em saber o que estava acontecendo. Por que isso agora?
A – você não sabe mesmo a diferença entre um fio dental vermelho embaixo da minha cama e uma prima metida a engraçada querendo chamar a atenção? Pelo amor de deus, quantos anos você tem?
B – a diferença? Que importa a diferença entre um e o outro? O fato é que você nunca esteve nem aí pra o que eu fizesse ou deixasse de fazer. Não vem agora dar uma de esposa magoada, não, porque isso é papel.
A – Você só ta tentando jogar a culpa pra cima de mim!
B – culpa? Que culpa? Culpa de que? Eu nem usei essa palavra ainda.
A – a culpa de o nosso casamento ter ido pra puta que o pariu! Essa culpa.
B – você usa essa máscara, você faz um discurso de mulher ferida e o cacete a quatro, mas fala a verdade aqui pra mim, cá entre nós: você não me ama mais, não é? Aí resolveu arrumar qualquer desculpa esfarrapada, a mais plausível, já que sim, você sabe muito bem que eu mantenho outras relações, pra sair de casa.
A – eu não sabia de nada, fiquei sabendo agora. E não vou sair de casa, quem vai sair é o senhor. E outra coisa...
B – “nem adianta ligar que eu não atendo. Não adianta mandar flor, cartão”, eu já sei o que você vai dizer, amor. Eu conheço você todinha.
A – eu não ia dizer isso. E outra coisa, eu te amo.
B – ama? E o que, diabos, é amor pra você?
A – qualquer coisa que com certeza não admite traição. Chifre, chifre eu não agüento.
B – é que você encara tudo com muita seriedade. Olha, que te importa o que eu to fazendo de seis às oito de uma sexta feira, entre o fim do trabalho e a hora em que eu chego em casa, se quando eu chego, te beijo, te abraço, te dou carinho, te levo no cinema, se ando contigo de mãos dadas na rua, se te apresento pra minha família como se você fizesse parte dela, se eu divido a minha vida contigo, às oito em ponto, oito e dez no máximo? Que importa se eu estou fritando ovos mexidos, resolvendo negócios ou comendo uma puta, nesse meio tempo? Se é contigo que eu divido a minha vida depois das oito horas da noite? Você ficaria mais feliz se eu estivesse fritando ovos mexidos ou resolvendo negócios do que se eu estivesse comendo uma puta? Então pronto, te digo que estava fritando ovos mexidos ou que estava resolvendo negócios e ponto final. Você fica feliz e se contenta, já que o que os olhos não vêem e os ouvidos não ouvem, o coração não sente. E eu também, porque afinal eu acabei de comer uma puta. Discorda?
A – a frieza com que você trata o amor é uma coisa inexplicável. A frieza com que você me trata...
B – vamos lá, já vi que oito da noite não ta bom pra você. Se te faz feliz, chego em casa as sete horas.
A – mas agora você já me disse que existe a possibilidade de você estar comendo uma puta nesse meio tempo, entre o fim do trabalho e a hora em que você chega em casa. Agora que os meus olhos viram e os meus ouvidos escutaram, o meu coração vai sentir.
B – e aquele rapaz simpático, por onde anda? Leonardo, Leandro, como é?
A – Leonardo ta bom, ta fazendo um curso fora. Foi morar no exterior. Se deu bem, o menino! Menino bonzinho, mesmo. Tomara que tenha sorte na vida.
B – e você nunca mais soube dele? Vocês tinham um casinho, não tinham?
A – como você pode dizer isso da sua própria mulher? E sem nem mesmo se sentir mal com isso? Como é possível, meu deus, eu me casei com uma frigideira.
B – mas não é verdade? Eu sei que é verdade, você sabe que é verdade, você sabe que eu sei que é verdade, o único negócio é que você não quer que eu saiba que você sabe que eu sei que é verdade. Esconder pra quê? Todo mundo aqui já sabe que é verdade.
A – o que os olhos não vêem, o coração não sente, não é?
B – do que você tem medo? Os seus olhos estão com medo de alguma coisa. Do que é que você ta com medo? A minha serenidade te assusta? A minha frieza te assusta?
A – você me assusta.
B – por que? O meu comportamento é atípico demais pra você? Você já foi casada antes... e já botou o marido pra fora de casa também, eu sei disso. Você não me contou qual foi a reação, mas muito provavelmente ele deu um chilique e teve alguma coisa parecida com um ataque cardíaco. Era isso que você esperava – não, melhor, era isso que você queria que eu fizesse. E já que eu não fiz, você acha que eu não te amo. Mentira, eu te amo. Eu te amo bastante. Mas para que dar um chilique ou ter um ataque cardíaco? Eu sou frio, sereno, sim. Você pode me colocar para fora de casa, se quiser. Mas na hora de dormir, vai se sentir uma hipócrita, porque a calcinha que você encontrou embaixo da cama não é diferente de todos os casos que você já teve, de todos os amantes, de todas as aventuras ou sejam lá o que forem os seus relacionamentos extraconjugais, dos quais eu estou ciente desde o primeiro dia em que surgiram, todos, um a um. E você sabe que eu estou.
A – você ta se drogando? Percebe que nada do que você fala faz sentido? Eu queria um relacionamento saudável, droga. Você não entende isso, por que você não entende isso?
B – ah, é? E o que é pra você um relacionamento saudável?
A – que o tempo longe um do outro seja preenchido por saudade, e não por sexo com outras pessoas. Que um apóie o outro, que um diga claramente para o outro o que passa pela cabeça e, principalmente, que um ou outro não descubram uma calcinha vermelha de alguma putinha embaixo da própria cama.
B – eu sei onde isso existe! No país das maravilhas, você pode perguntar pra sua amiga Alice. Ela te dá umas dicas bacanas. Acorda, amor. Isso que você quer não existe com casal nenhum. Não existe fidelidade. O ser humano não é feito para ser fiel, se ser fiel é ficar atado a uma pessoa só pra vida inteira. O homem não é cego, surdo, nem mudo. Ele vê uma mulher, se interessa por ela e não há nada – nem mesmo a sua própria mulher – que possa impedir o cara de seguir os seus instintos. E com a mulher não é diferente, não. O ser humano é curioso, ele precisa de novidade para se excitar. A mesmice é muito chata, você não acha?
A – eu acho que você é maluco. Eu tenho dezenas de amigas muito bem casadas e felizes com seus maridos, pessoas realizadas e que se completam, não precisam procurar refugio em outros braços, porque se amam verdadeiramente.
B – é, tudo isso é muito bonito, mas eu te garanto que esses maravilhosos maridos realizados e felizes estão fazendo a mesma coisa que eu toda sexta feira, de seis as oito. Depois, sim. Depois das oito eles são maridos exímios, pais excelentes. Mas só depois de uma bela trepada.
A – então você não acredita no amor? Casou comigo por que? Pra que?
B – tanto acredito que já disse, te amo. Te amo de verdade.
A – se você me ama, por que me trai? Por que você me trai?
B – te trair seria fazer uma coisa que você desconhecesse ou não estivesse de acordo. Você sabe que eu levo pra cama outras mulheres. Sempre soube. Não é traição minha, é falta de ciúme seu.
A – de novo com essa história de que a culpa é minha.
B – de novo com essa história de culpa! Ninguém falou em culpa. Eu falei em desamor. Desamor. Você me desamou.
A – desamei o que, não inventa.
B – eu não consigo imaginar outro motivo pra você me colocar pra fora de casa. Trair, eu não te traí. Você não me traiu. Nós dois sempre soubemos de tudo e nunca dissemos um ai pra reclamar. O que é então, se não é desamor?
A – sabe o que é que é? Cansaço. Eu to cansada. Cansada dessa nossa relação estranha, desse negocio sádico que a gente vive. Eu não sou feliz. Quer saber de uma coisa? Eu tenho casos sim. Sempre tive. Sempre vou ter.
B – então você confessa?
A – os casos? Confesso.
(pausa. B pega a calcinha que A havia encontrado, joga no lixo)
B – eu quero que você pegue todas as suas coisas e saia da minha casa agora.